A.Poética # 17

Bem-vindos ao A.Poética # 17.

Eis-nos de volta após mais de um  ano de hiato e a presente edição traz-nos pela primeira vez o olhar fotográfico per si da Fedra Espiga Pinto, a nossa photo selector é a autora das fotografias que acompanham a poesia do # 17.

Destaque absoluto para o leve cetim no trabalho de Rosana Chrispim, que desde o outro lado do Atlântico, acompanham Paulo César Moura e Dalila Teles Veras.

Saudações,

MF

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AS ESCOLHAS DO # 17:

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FEP

O sonho está sempre limitado
pela paragem nas estações
filtra-me o medo
que cose os dias
deambula pela carne
renega o desejo que se impõe nas tuas coxas
sorve as palavras
masca as vísceras que te habitam
come-me ao entardecer
vomita-me ao amanhecer
só assim poderás saborear os dias

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Rogério Saviniano Telo – Licenciado em Inglês/Francês pela UMa, fez parte dos seus estudos na Universidade de Gotemburgo. Desde muito cedo se dedica à poesia pois esta é o elixir da existência.

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CARNAVAL

Sambavam, genuinamente descalços, embrenhados na melancolia dos tambores ao ritmo orgásmico de uma dança despida de pudores. Mergulhavam no esquecimento do que eram, bebiam do sonho um dia castrado, e dançavam, uma dança quase agonizante, num misto de prazer e dor, de quem ama até ao vazio da morte.

FEP

Rita Freitas nascida no Funchal em 13-01-1965. Estudou Accão Social mas trabalha no Exército. Apaixonada pelos poetas portugueses desde Fernando Pessoa, H. Helder a Mia Couto, adora expressar o que lhe vai na alma nas pequenas frases que ouve do coração. Tem uma grande admiração e respeito pelos animais e pela natureza que se reflecte não raras vezes, nos poemas que publica no seu blogue “À Procura da Lucidez”. Tem dois poemas editados nas Antologias de Poesia Portuguesa Contemporânea: “Entre o Sono e o Sonho”.

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FEP

secção

alma e corpo repletos
de desejo e solidão
esperavam
pacientes
o fim da falta
de tempo
de descanso
tanto que
adiavam
(des)concordes
entrega
amanhã

cansaço

 

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FEP

fragilidade

tão frágeis as
certezas
navio naufragado no porto
corda partida no nó
palavra ancorada em símbolos
não mais
(de)moventes

tão débeis as
razões
movediças à luz
da luz que se acende
expiadas no pano de fundo
das horas
(a)fundadas em águas
defenestradas
não menos

mediatrizes inúteis

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paliativo
novas portas de
bares
farmácias
igrejas
                     (variações sobre o mesmo                           equívoco)
abrem-se em profusão
os homens com suas feridas
os males com suas metástases
todos muitos e nenhum
almas cada vez mais rasas
e degradação cumprida
a risco(a)
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FEP

exigência

necessária a pele
além da memória da pele
necessário o cheiro
mais que a memória do                                          cheiro
nada senão
a presença
cumpre
a distância entre
corpos distantes
que se atraem
o que os olhos não veem
o coração (res)sente
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FEP

advento

um dia
emaranhados
e redes e amarras
no abrir de olhos
um mar
angústia
destroços e sofreguidão
uma linha
promessa e divisa
um encontro
tábua e náufrago
porto e remissão
história escrita a sal
futuro e passado
dividindo (as) águas
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Atualmente vivendo em Valinhos, SP, Rosana Chrispim nasceu em Carandaí, MG, em 1958.  Formada em Jornalismo pela Universidade Metodista de São Paulo (1984), trabalhou por quase 30 anos como Produtora Gráfica.  Integrou o Grupo Livrespaço de Poesia, Santo André, SP e, em conjunto com os demais integrantes, publicou Coletânea Livrespaço II, 1984, Literatuando – Coletânea Livrespaço III, 1985, Subvertida Palavra – Coletânea Livrespaço IV, 1988, e Sete Versus Sete (E se resolvermos falar de amor…) – Coletânea Livrespaço V, 1990. Foi uma das editoras da Revista Livrespaço, 1992-1993, que ganhou o Prêmio APCA como melhor realização cultural de 1993. É de 1996 a plaquete Poética da EssênciaSemelhanças, o primeiro livro solo, foi publicado em 1986 e Entretempo, o segundo, em 2003.

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OS NOSSOS POETAS CONVIDADOS:

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FEP

DESEJO:

Só tu sabes para onde vais.
Só tu sabes
Para onde a onda branca
Te leva em azul infindo
Até outras margens de Esquecimento.
Só eu sei
O que desejo no ímpeto
Equívoco das luzes,
Na incerteza do tempo
Junto às correntes do mundo.
Ah! Ser recebido por mim mesmo
Na solitude aberta das árvores
À beira água…
Assim, quimérico e livre
Na vocação vazia da plenitude,
Fiel ao silêncio da aragem,
Ao calor do mar
E à suavidade das rochas…
O frémito do olhar eterno
Contemplando o firmamento
Além do início e do fim.
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Crónica 57

o que é a maturidade?

[o que é a sabedoria dita pela boca de uma lontra que não tem um dique esculpido – à força de dentes amarelos – aonde voltar?]

é um quarto sem sombras – quer dizer – é um quarto com sombras – se não bem-vindas – pelo menos toleradas – amancebadas – se não toleradas – pelo menos sombras que são companhia

é um cofre de segredos que enterramos dentro da coxa – deitamos a chave fora porque não fechamos o ferrolho – e acordamos lembrando – com pânico – o lugar onde está o cofre – porque dói – e fica a carne envenenada de chumbo – o que está dentro é sabido – o que está dentro não nasce ou revive em palavras – não o pode fazer

FEP

assim é – se assim é – porque persistes em caminhar de candeia à frente das ventas como vestes desenrugadas?

porque vais e vens – e vais – e pões-te a rabiar como um cachorro – a ladrar para a tua própria coxa – para que todos os passantes – pequenos – parvos e compadecidos – parem – e fiquem – de mão no queixo suado em bica – a deitar nesse teu lombo danado a água que nunca há-de te lavar?

de que te falo eu?

neste momento nem eu sei – nem eu sei o que te diga

mas sei que não há horas para ti – para ti – que és da horda dos traidores multiplicados

porque não vês a hora parda de cansaço em que os coelhos saem das tocas – não vês – nem com o uísque – ou o vinho – ou a cerveja cujo estágio no frio dispensas – que levas à boca sôfrega

não vês a hora esguia em que os gatos afiam as unhas nos troncos das árvores [se as afiassem nas tuas patas malditas nem o sentirias]

não vês a hora devastada em que os lobos – que esperam por ti [e tu não sabes dessa espera] – saem de cabeça baixa dos covis – saem mecânicos – conformados com a necessidade de morte – prontos a serem lobos – e tu pronto a seres caça
não vês a hora em que as borboletas procuram uma sentinela – e fiam no fuso o equilíbrio da roda desbastada do mundo
 
não conheces a hora – lavada nos teus furores de animal – em que tosses – com fraqueza – após um orgasmo
nas horas – nessas horas – em quaisquer outras – sabes sempre o que fazer – e não sabes o que fazer
pensas que as conheces porque – segundo um segredo alardeado te revelou – jogaste damas com elas e tentaste armar uma pata de galo – não conseguiste e então tentaste anular as regras
 
mas as horas – assim indistintas – assim indizíveis – são-te uma clausura imposta pelo teu crânio nivelado – se elas não existissem continuavas a existir tu – que as cartografas com o teu astrolábio gretado – que delas falas no teu portulano de uma dimensão espelhada na tua cara
não sabes – e mesmo que soubesses – faltar-te-ia o cabrestante à boca do calhau para puxar o contrabando para terra firme
 
não sabes nada – não vales nada – e assim ficas – meu caro – salafrário – nessa tua cabotagem à vista constante de terra daltónica – nem horas – nem penhascos – ou baías – nem penhores – ou cizânias – nem caudas de ornitorrinco – ou dodós moídos em mandíbulas de porcos – nada
estou cansado – estou cansado de falar contigo – ficas aí – assim – sempre – parado – igual – na tua ablução mental – que não distingues de um vómito – que mete nojo ao animal para quem o nojo não existe
[um espelho foi traído por um prego indolente – e partiu-se no chão]
 
[alguém tropeçou – cortou-se – verteu sangue – mas não houve sobressalto – ouviu-se um rosnar manso por detrás de uma porta – ou vindo do outro lado de uma sombra]

Dinarte Vasconcelos

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FEP

Que sabemos nós

seres chorosos
à beira da morte
do outro?
Que sabemos nós
seres medrosos
à beira da vida
à beira de nós mesmos?
Que sabemos nós
da barca à espera
da passagem
do mistério?
– Nada
Por isso tememos
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URURAU
Para que o Sol nunca deixasse de criar maravilhas,
o Rio Paraíba do Sul sempre lhe ofereceu presentes:
a jornada dos peixes e a dança macia da Lua em seus espelhos d’água.
Uma noite, nas planícies fluminenses, o Sol, embriagado
pelos encantamentos das águas do rio,
saiu de sua alcova a fim de amar a deusa insinuante e líquida.
Desse amor, nasceu Ururau, jacaré filho do Sol e da Lua das Águas do Rio.

FEP

Mas, um dia, quando a estranha gente chegou
por suas canoas altas e grandes, quebrando os espelhos da água,
quis da terra ser a dona e a todos escravizar.
Na curva do rio,
Ururau a tudo assistia e tudo viu:
a primeira plantada e depois as cruzes espalhadas,
estampando a ruína no horizonte,
na planície profunda dos ventos,
em campos do sem-fim-Goitacá.
Por isso, por vingança, o deus selvagem do Paraíba do Sul
saltou, lutou e venceu, levando consigo para o abismo o Sino de Ouro
– símbolo da Igreja que vivia à custa do metal nativo.
Quem conta essas histórias mágicas de pedras e perdas?
Quem fala da esquadra Cruz do Silêncio?
Quem desperta a memória do nunca-mais?
Lá, no fundo mais profundo do Paraíba do Sul, há alguém
que tudo sabe porque tudo viu.
O seu nome é Ururau, jacaré-deus,
o Senhor da Outra Memória.
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