Crónica em “Vértice”

Só o António Plácido, actor e intérprete da Palavra, não estaria presente no ensaio. Quando chegamos à cave que, para já, alberga a Associação Musical e Cultural Xarabanda, entidade-berço de muitos projectos da música e da cultura local madeirense, já haviam chegado o Rui, o Miguel e o Tozé: os Vértice estavam prontos a afinar com melodias emergentes os poemas velhos e novos dos poetas da Ilha, ou de fora da Ilha, mas que dela falam. E sentem.
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Uma vez perdida a gravação do ensaio, só nos podemos agora socorrer da memória e das notas feitas em mais um caderno-capa-preta-da-praxe, mas segue: o projecto que nasceu com morte anunciada aos 15 poemas, 15 canções e 15 concertos, animado pelo entusiasmo causado no público que tem assistido às actuações que tem feito, o objectivo agora, além da gravação de um álbum, é a produção de vários trabalhos com origem na diversidade de autores locais.
A ideia foi pegar em textos de poetas madeirenses ou residentes, que à partida não se enquadrariam numa composição musical, para transmitir uma mensagem que tem tanto de individual como de colectiva e que no seu âmago, transmite o sentir de cada autor em relação à vivência causada pela Ilha. O pretexto assenta na constatação da especificidade da produção poética criada em contexto insular, que narra as mesmas especificidades apenas encontradas em territórios insulares, embora esses não se saiba bem dizer se geográficos, se mentais, endócrinos mesmo. A tais palavras e sentires, os Vértice juntaram uma outra especificidade da Madeira: o inconfundível som dos seus cordofones. Assim, composições poéticas como “O Ofício de Cantar” de Sainz-Trueva, “Porto Santo” de Irene Lucília, ou “O tempo vai-te ensinar” do Feiticeiro do Norte, surgem a nossos ouvidos, e ao longo do par de horas que passamos com os Vértice, acompanhados do som do rajão, do braguinha e da viola de arame nas mãos do Tozé que compõe as músicas e se faz acompanhar da percussão do Rui e do trombone de varas do Miguel Camacho.
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A “viagem” começou ao som do trombone e do braguinha, com a “Ilha dos Amores” de Vasco da Gama Rodrigues, seguindo depois com “Casulo Fechado” de Vieira de Freitas, sendo entrecortada por explicações técnicas relativas à manutenção sonora de acordo com cada tema.
Seguimos com os “Cantos” de Avelino Costa para sermos elucidados acerca da forma como a biografia de cada poeta acaba tendo a sua influência na composição musical de cada poema e enquanto pensamos na possibilidade de escrita de um poema sobre a sua transformação em arte auditiva, vulgo música, reparamos na abstracção do Rui que depois nos confessa: “sou suspenso pelas palavras”. Em Vértice, o Rui faz por explorar os instrumentos de percussão de formas outras para além das tradicionais. Gosta de sentir e experimentar “a liberdade da criação e da interacção dos elementos”.
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Voltamos à Terra na “sustentável leveza da nota” com “Regresso” de David Pinto-Correia para de seguida sentirmos o “Eu vivo aqui” da Teresa Jardim. Há um travo a Beirut no trombone do Miguel que nos faz bater o pulso embalado em cordas de tradição e raízes e parece que já quase conseguimos trautear todo o repertório do grupo – há uma irresistível familiaridade desde “São Gonçalo numa parede” até à “Rua de Stª. Maria” que nos acompanha ainda mentalmente pelo resto do dia.
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Os Vértice não serão, certamente, originais no conceito que ora aqui apresentam – sempre poemas se metamorfosearam em melodias. Ainda mais além que o evidente interesse conceptual na intertextualidade da relação poema/música, o que aqui conta é, em nosso entender, a transposição da Ilha e do ser Ilha, do sentir Ilha, escrevendo-a, musicando-a, sentindo-a numa nova linguagem e enaltecendo a beleza da Palavra nela contida. Por isto, aconselhamos: peçam licença para assistirem também a um ensaio – a poesia agradece e a alma sorri.

 Texto e fotos de Maria Fernandes